- Diversidade
Martin Luther King tinha um sonho. O sonho de ver seus filhos julgados por sua personalidade e não pela cor de sua pele. Mais de 50 anos depois de sua morte, a luta contra o racismo continua sendo um desafio em nossa sociedade. Pensando nesse cenário e em como podemos transformar a nossa empresa e a comunidade ao nosso redor, lançamos recentemente a Política de Diversidade e Inclusão da SoftDesign. Ela estabelece regras e compromissos que devem pautar a atuação de nossas pessoas colaboradoras, e tem como objetivo combater ativamente todas as formas de discriminação e preconceito.
Na ocasião, também foi criado um Comitê de Diversidade e Inclusão que, para lembrar o Dia da Consciência Negra (20 de novembro), organizou a palestra Racismo à Brasileira: Compreender para Combater. A palestrante convidada foi Bruna Fernandes Marcondes, que compartilhou seus conhecimentos sobre o racismo no Brasil.
Bruna é advogada em Direitos Sociais, especialista em Direito Sindical e mestranda em Ciência Política, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em sua fala, ela abordou temas importantes e levantou questionamentos essenciais para que possamos refletir sobre comportamentos e condutas: Você se considera uma pessoa racista? Acredita que existe raça entre os seres humanos? Sabe o que é mito de democracia racial?
Compreender a realidade é o primeiro passo para combater o racismo. Por isso, Bruna deu início a palestra propondo questionamentos às pessoas colaboradoras da SoftDesign. A experiência ajudou a dar o tom de como vemos o racismo no Brasil, deixando claro o que estudiosos chamam de ilha de democracia racial. “Essa mesma pesquisa foi conduzida nos anos de 1990 em escala nacional e tinha como objetivo observar a concepção de racismo no nosso país. A grande maioria da população acredita sem muita nitidez que existe racismo, mas não se percebe como sendo racista”, contextualiza.
Essa é uma característica central para perceber como o racismo acontece no Brasil. “O racismo existe enquanto concepção com uma certa desconfiança. Ele nunca está num lugar nítido e palpável. Perceba que isso não é sobre questões subjetivas, reflexões ou sobre ter que melhorar um determinado comportamento. Entretanto, nos dá uma noção do quanto é difícil identificar práticas, consequências e realidades cotidianas de racismo no Brasil”.
Há quem diga que a melhor forma de acabar com o racismo em nosso país é eliminando o critério de raça. “Quantas vezes no Dia da Consciência Negra escutamos que não existe raça entre seres humanos. Biologicamente falando essa informação está correta. A ciência já definiu que não temos como determinar critérios e constituir raças entre seres. Portanto, raça negra e raça branca não são concepções da biologia; mas existem como criações sociológicas e influenciam a vida em sociedade”.
Entretanto, é importante ressaltar que em outros momentos da história da ciência esse entendimento não era assim. A advogada lembra que atualmente existem inúmeras pesquisas que demonstram que o Brasil promoveu campanhas de embranquecimento e genocídio da população negra, hierarquizando acessos à direitos baseados em critérios de raça, etnia e cor. Essa herança do racismo doutrinário e científico existe até hoje.
A ideia de que a igualdade é uma condição de todos os seres humanos é muito familiar no nosso dia a dia. Mas, afinal, se somos todos iguais, como podemos olhar para as diferenças? Quando ações afirmativas foram lançadas em 2012, essa pauta fazia parte de uma agenda política. Porém, de acordo com Bruna, nossa sociedade sempre demonstrou um medo em assumir que as pessoas são diferentes e partem de lugares diferentes. “As ações afirmativas conseguiram sobreviver a esse debate simplesmente porque ele foi incorporado a questão de classe, passando pela ideia de que a pobreza é um fator de diferença e não a cor da pele”.
Esse cenário evidencia uma questão fundamental para entendermos a desigualdade no Brasil. Quando as pessoas dizem, em sua maioria, que acreditam que existe racismo no Brasil, elas reconhecem uma situação. Porém, quando tentamos analisá-lo de maneira mais específica e cotidiana encontramos muitas dificuldades. Isso ocorre devido à existência de um movimento de naturalização da diferença.
“Todos nós, seja individualmente ou em coletivo, quando somos confrontados a verbalizar a existência do racismo nos sentimos constrangidos. E esse constrangimento não necessariamente está ligado ao fato de uma pessoa ser secretamente racista. Esse constrangimento tem a ver com a forma como pensamos a sociedade brasileira”, ressalta Bruna.
O racismo é um fenômeno político, socioeconômico, cultural e símbolo. É algo complexo, que não se enxerga de um único ponto de vista. Segundo a advogada, o racismo está em questões da macroeconomia, de relações internacionais, na empresa e na família. Além disso, o racismo é estrutural, mas pode ser institucional, interpessoal e discriminatório. Mas, o que isso quer dizer?
Nem sempre o racismo interpessoal será capaz de explicar o fenômeno como um todo. Um exemplo disso é o episódio do goleiro Aranha, que sofreu ofensas racistas durante um jogo na Arena do Grêmio, em 2014. Bruna ressalta que esse é um caso de racismo interpessoal e discriminatório, em que alguém ou um grupo de pessoas ofendem outra, cometendo injúria racial contra uma pessoa negra. “Embora muito importante, esse episódio não explica o racismo como um todo. Por isso, não faz sentido analisar o fenômeno apenas desse lugar”.
Para a advogada, isso significa que relações, interações e amizades individuais não podem ser a régua da leitura sobre o racismo no Brasil. “O racismo é uma questão central da vida social. Se eu digo que ele é estrutural, o que quero comunicar é que ele está presente em várias situações e lugares, em níveis visíveis e em níveis mais profundos. Entretanto, o racismo não é considerado uma anomalia, um erro ou uma doença. E isso não quer dizer que está tudo bem. O racismo continua sendo uma questão de desigualdade e de falta de acesso à direitos. Por isso, precisa ser combatido por todos nós”.
Esse cenário está ficando cada vez mais claro, pois atualmente opiniões racistas são muito mais atacadas do que há 40, 50 anos. Entretanto, esse movimento faz com que tenhamos uma crença equivocada de que o racismo foi superado, já que fazer piadas racistas não é mais aceitável em nossa sociedade contemporânea. Porém, a verdade é que pouco mudou. O racismo continua sendo um fenômeno complexo, com camadas densas e profundas de desigualdade e opressão.
O nível de engajamento social e espanto ao ver um homem branco em uma situação socioeconômica vulnerável (morador de rua, usuário de drogas) é igual ao ver um homem negro? De acordo com Bruna, uma pesquisa realizada no Brasil entrevistou desembargadores e ministros, com o objetivo de entender a trajetória profissional das pessoas negras que compõem essa área. O resultado é bastante simbólico, visto que muitos entrevistados dizem que deixaram de se ver como pessoas negras ao alcançarem cargos de poder.
Em um trecho de uma das entrevistas desse trabalho, um dos entrevistados diz que era negro antes de se tornar desembargador. Por meio dessa fala, é possível perceber que um lugar de poder ainda é considerado um lugar de branco. “O racismo é um fenômeno social complexo, composto pelo que enxergamos, mas também pelo que não enxergamos. É como a metáfora do iceberg: na superfície está apenas uma parte do problema, a parte inferior é muito mais densa, profunda e invisível aos olhos”, destaca Bruna.
Sendo assim, a análise do racismo exige um exercício de abstração para permitir a sua compreensão e isso não é uma peculiaridade exclusiva deste fenômeno. No setor da tecnologia, por exemplo, também é muito difícil compreender o conteúdo acadêmico relacionado ao setor.
“O exercício da abstração é um exercício de produção de conhecimento, de compreensão das coisas do mundo. Então não faz sentido que quando eu me depare com o racismo, o meu primeiro pensamento seja: “se eu não enxergo, não existe”. Afinal, muito do que não enxergamos é exatamente o que compõe o racismo no Brasil”.
O Racismo à Brasileira é formado sobretudo de coisas que não enxergamos. Lembre-se, nem todo racismo decorre do desejo ou do exercício da discriminação. Essa é uma descoberta fundamental para um percurso longo que nos permite entender o racismo e sobretudo combatê-lo. De acordo com Bruna, a expressão Racismo à Brasileira é de autoria de Beatriz Nascimento, importante intelectual brasileira dos anos 70. A ativista criou a expressão em uma tentativa de definir o que é e como acontece o racismo no Brasil.
Beatriz Nascimento pesquisou e escreveu sobre o Racismo à Brasileira em inúmeros textos, uma das suas percepções é que mesmo em situação de violência evidente, a vítima fica em dúvida se está vivendo aquilo: “Quando, entretanto, a agressão aflora, manifesta-se uma violência incontida por parte do branco em relação a uma pessoa negra, e mesmo nessas ocasiões pensamos duas vezes”.
As principais características do Racismo à Brasileira são:
– Expressões como “nos Estados Unidos é muito pior”. Contemporâneo ao movimento Black Lives Matter, muitos setores apontavam que o racismo nos Estados Unidos seria mais nítido que no Brasil;
– Miscigenação das raças como algo positivo;
– Dificuldade e resistência de reconhecer casos de racismo no país.
– Expectativa de padronização do comportamento a partir do branco;
– Funciona como opressão interna, para pessoas negras.
Bruna atua diretamente em casos de pessoas que sofreram racismo no seu ambiente de trabalho. A advogada descreve que esses episódios sempre fazem parte de um processo de entendimento e investigação, visto que a constatação de racismo nunca é dada como óbvia. “Existem casos muito específicos no ambiente profissional que chegam para a advocacia como, por exemplo, uma trabalhadora que foi demitida por não tirar as tranças afro ou o caso de uma trabalhadora negra que era a única designada para o serviço de faxina. Isso acontece de forma velada e geralmente vem em forma de convite para melhorar a aparência”.
Segundo a especialista em Direito Sindical, a democracia racial é uma ideia forjada na positividade da miscigenação. Ela pode ser tanto uma intenção quanto uma cultura e baseia-se no pensamento de que no Brasil convivemos de forma harmoniosa, pois somos a terra das três raças: indígena, negro e branco. “A incorporação dos negros no futebol manifesta-se num lugar de suposta valorização dos negros e negras, assim como o carnaval, que foi incorporado como uma manifestação de todos os brasileiros. Mas, será mesmo que o Brasil escapou da discriminação racial e do racismo?”
Essa é a ideia central do mito da democracia racial: ‘o Brasil não tem nada ver com a segregação dos Estados Unidos ou da África do Sul, pois conseguimos miscigenar todo mundo’. De acordo com informações compartilhadas por Bruna, o mito da democracia racial é tão forte enquanto cultura e tão sofisticada, academicamente falando, que imigrantes negros de pele escura, como haitianos e senegaleses, verbalizam surpresa e espanto em relação a forma como são tratados no Brasil.
Segundo esses imigrantes, as situações que mais chocam são as cotidianas como, por exemplo, os assentos disponíveis ao seu lado não serem ocupados no transporte público, a falta de contato físico nas interações sociais, como se despertassem nojo e desprezo. Esses imigrantes sentem-se surpresos justamente porque acreditavam na ideia de que no Brasil vivemos em uma democracia racial.
A democracia racial é considerada um mito porque ela conviveu desde sempre com políticas de extermínio e empobrecimento das pessoas negras. Segundo Bruna, documentos comprovam que a própria facilitação da imigração de pessoas brancas (italianos e alemães), sobretudo para a região Sul do país, dialoga com essa intenção institucional de embranquecimento forçado da população.
Bruna ressalta que houve uma mudança na legislação brasileira para deixar negros e negras sem acesso à educação, saneamento e moradia. “Se eu não posso plantar e colher, eu vivo numa zona de fome, miséria, doença e morte. Além disso, na altura existia também a Lei da Vadiagem, que dizia que ficar sem trabalho era uma condição para ser preso, sendo que os negros foram deixados sem emprego e a margem da sociedade. Infelizmente essa é uma história de extermínio”.
No Brasil não existiu uma política de segregação como nos Estados Unidos e na África do Sul. Mas, isso não anula a existência do racismo em nosso país. Em alguns Estados brasileiros, a população negra representa entre 50% e 80% do total da população, enquanto nos Estados Unidos o percentual máximo é de 20%.
Mas se existe democracia racial no Brasil, por que negros e negras são maioria entre os analfabetos, presos e moradores de rua? Por que são minoria nas universidades, escolas e trabalhos qualificados? De acordo com dados da pesquisa Emprego e Desemprego (PED) de 2018, 73,7% das mulheres negras que trabalham na região metropolitana de São Paulo estão no setor de serviços, sobretudo no trabalho doméstico. Na região metropolitana de Porto Alegre, o percentual sobe para 78%. As mulheres negras possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho e quando acessam ganham 43% menos do que as mulheres brancas.
No Brasil, existe uma ideia de lugar universal e oportunidades iguais para todos. Porém, esse pensamento desafia as características do Racismo à Brasileira, já que não existe um lugar universal do ser humano. Para Bruna, na nossa sociedade as coisas são informadas e constituída por meio da raça: lugar do negro e lugar do branco.
“Lugar de fala não é sobre autoridade de discurso ou sobre quem pode e quem não pode falar. Perceba que o lugar universal diz que somos todos iguais e o lugar de fala questiona esse pensamento. A naturalização das coisas é branca. Isso tem relação direta com oportunidade e meritocracia. É aquele velho discurso de que para ser chefe, basta você ter um bom desempenho. Essa é uma fala típica de uma concepção de igualdade de acessos, de lugar universal”.
Essa concepção terá consequências profundas na sociedade e, claro, nas empresas:
Isso nos leva novamente para a metáfora do iceberg: as pessoas observam apenas uma parte do problema, enquanto o principal permanece invisível. Esse comportamento está associado ao lugar universal que é acompanhado de iniciativas como: #somostodosmacaco, Dia da Consciência Branca e outras tentativas de apagamento da desigualdade racial. “São muitos os desafios para lidar com o Racismo à Brasileira porque ele não é palpável, não é só parar de fazer piada e tratar pessoas negras sem diferença. O cenário é muito mais complexo”.
Bruna ressalta que é importante ser antirracista no combate ao racismo e que espaços de debate e diálogo, como o proporcionado pelo Comitê de Diversidade e Inclusão da SoftDesign, são iniciativas de educação antirracista que ajudam a perceber o mundo e o racismo nas suas complexidades. “Penso que a melhor forma de compreender o Brasil em sua essência é lendo pensadores e pensadoras brasileiras. Precisamos enxergar para além do que se vê. Lidar com o racismo de forma cotidiana é a vida das pessoas negras e isso não deveria existir”, conclui.
*O SoftDrops é um evento de troca de conhecimento que acontece todas as quartas-feiras, na sede da SoftDesign. A cada semana, um colaborador se predispõe a expor para os colegas algum tema de seu interesse, que tenha relação com os três pilares do nosso negócio: design, agilidade e tecnologia. A minipalestra dura em torno de trinta minutos e é seguida por um bate-papo entre os participantes.