- Entrevistas
A pandemia de coronavírus está provocando mudanças. O trabalho presencial e o modelo de gestão vertical são só algumas das (já antigas) práticas que a nova realidade está desafiando. Nesse sentido, tais transformações abrem caminho para novas tendências, que priorizem a autogestão, o compartilhamento e a sustentabilidade.
Como todo novo cenário, ele gera incertezas e, por isso, convidamos o professor Maurício Sálvia – economista e criador do aplicativo TCC Fácil – para falar sobre modelos de economia e gestão que estão em pleno crescimento. Ele é o nosso terceiro participante de uma série de entrevistas que estamos realizando, a fim de aproximar a academia do mercado para auxiliar o desenvolvimento e sustentação de negócios neste tempo de crise. Desde já, agradecemos a sua disponibilidade e contribuição para o nosso blog.
SoftDesign – O que é e como funciona a Holacracia dentro das empresas? Ela pode colaborar com a inovação?
Maurício Sálvia – Tem um autor que me inspirou muito ao falar sobre o DNA da inovação. O Simon Sinek foi brilhante ao fazer um modelo, chamado Golden Circle, para falar exatamente sobre como pensar, agir e comunicar. Ele aponta que algumas das empresas que têm feito inovações profundas utilizam esse conceito: ou seja, elas não partem ‘do que’ produzir, ou ‘de como’ o fazer, mas do ‘porque’ é feito.
Percebo que a geração que tem mais força no mercado atualmente é a geração dos millenials, e eles têm justamente essa característica muito rica, que é trabalhar movido pela paixão, por uma causa ou uma bandeira – pelo porquê. Então, as empresas ‘bacanas’, digamos assim, já entenderam que precisam ter um propósito importante, que esteja em sinergia com as paixões dessa geração. O resto acontece de uma forma natural. Quando existe a paixão abarcada em um projeto, o resultado é a inovação.
A Holacracia aparece como uma boa opção pois consegue atender a este cenário: ela trabalha afastada do modelo que algumas empresas seguem como o da pirâmide organizacional, em que o topo é o nível estratégico e a base é operacional. A Holacracia traz, até mesmo em seu próprio símbolo, os círculos que representam os papéis desempenhados por pessoas e os processos executados.
De uma forma simples, é algo que permite que todos desenvolvam suas funções dentro do propósito comum a todos. É um modelo que reúne chances para chegar em novas soluções de uma maneira rápida e sem alguns princípios que estão se fragmentando, como o da autoridade e do poder. Creio que as empresas que têm adotado a Holacracia obtêm como resultado uma inovação profunda, radical e disruptiva. Quando vemos, por exemplo, que esse modelo chega em uma determinada indústria, surge a oportunidade de fazer uma revolução em termos de produtos e serviços, que é o que importa para o negócio, no final das contas.
SD – Quando você fala em círculos com papeis e funções, isso significa que na Holacracia não existe hierarquia ou chefes? Ou essas existem, porém com atuações diferentes?
MS – Na prática, a hierarquia não existe, pois esse conceito está vinculado às pirâmides de gestão. Quando trabalhamos com círculos, existe uma autogestão, ou seja, dentro de um macro círculo – que poderíamos comparar com uma empresa – existem pequenos círculos, que são os projetos. Em cada um deles, existe uma espécie de comitê e, em vez de um chefe, há um facilitador. Então essa seria a estrutura, poderíamos desenhar esse círculo [o projeto] com várias pessoas e papéis, que seria autogerido e intermediado pelo facilitador.
No contexto de uma empresa de tecnologia como a SoftDesign, por exemplo, o modelo funcionaria com reuniões táticas em que os times recebem determinadas demandas e como resultado executam ações para os projetos. Claro que, para acompanhar a efetivação dessas ações, é necessário que exista algum tipo de indicador de desempenho. Esse mesmo grupo define o cronograma, as ações e as métricas; e os próprios integrantes irão acompanhar os resultados. Isso porque, naturalmente, estamos falando de uma empresa que teria maturidade em termos de propósito, em que ele estaria claro e permeando todas as instâncias da organização, e onde todos compreenderiam a importância de realizar as entregas.
Além dessas reuniões táticas, também podem ocorrer as reuniões de governança. Nessa etapa, o círculo é ampliado e ingressaria um gestor, por assim dizer. Nesse macro círculo, os papéis e as políticas são discutidos e determinados. Caso exista algum problema, ele poderá ser tratado nessa fase. O ideal é que, com a autogestão do time, a própria equipe faça a cobrança dos resultados. Caso isso não ocorra, a reunião de governança poderá ampliar a visão e os conhecimentos dos envolvidos para tentar oferecer soluções para o problema, sem interferir na parte tática, que continuaria delegada ao círculo menor.
Tem um conceito incorporado pelo exército norte-americano para descrever o ambiente de guerra desde o atentado às Torres Gêmeas, que é o VUCA – acrônimo para volátil, incerto, complexo e ambíguo. Muitas empresas se inspiraram nesse conceito e hoje, na realidade de uma pandemia, podemos perceber que todos os negócios estão vivendo os impactos dessas forças (VUCA) no cotidiano. As organizações mais planas e ágeis são as que têm mais condições de enfrentar essas forças. Já as mais tradicionais, têm dificuldade em se adequar. Acredito que o nosso ecossistema de negócios é prejudicado por manter esse apego ao formato tradicional.
SD – Por que a Holacracia se torna um modelo de gestão muito atrativo nesse momento de reconfiguração do mercado e do modelo de trabalho?
MS – Gostei que você trouxe na questão o termo “reconfiguração”. Ele já está embutido dentro da área da tecnologia, mas existe uma camada necessária de ressignificação. Hoje, a sociedade busca responder a questões profundas das relações, tanto humanas quanto comerciais. Pela primeira vez, estamos acompanhando no presente esse movimento. Temos um antes e um depois da pandemia, e isso está mexendo com nossos valores mais profundos. Os negócios que compreenderem essa transformação rapidamente terão mais prosperidade.
Nunca houve uma parada global como agora. Por exemplo, as guerras eram localizadas, e em todas elas os agentes econômicos não ficavam totalmente paralisados. É como se o planeta tivesse parado e isso gera uma reflexão, querendo ou não, sobre as coisas que já estávamos acostumados. Houve um estudo muito interessante de uma fundação norte-americana, a Kayser Family Foundation, sobre a população dos Estados Unidos – que podemos considerar uma nação rica. Eles concluíram que 50% da população norte-americana foi afetada em sua saúde mental pelas mudanças causadas pela pandemia – independente da classe econômica. Portanto, enquanto não houver respostas para esses problemas, que possibilitem ressignificações, teremos dificuldade de responder às questões comerciais, pois as empresas precisam entender que sua existência depende de pessoas.
O que acontece no âmbito social deve ser levado para os negócios. Se um indivíduo está perdido nesse tumulto, as organizações precisarão atender o seu problema. É necessário saber o que está acontecendo na alma das pessoas. Sem isso, não temos resultados. Algumas empresas já estão utilizando métricas alinhadas a isso, como o Return on Experience (ROX) – no lugar do Return Over Investment (ROI) – pois buscam o encantamento na jornada do colaborador e do cliente. Porém, hoje, esse cliente está perplexo com tudo que está acontecendo. Ainda não compreendemos totalmente essas mudanças. Estamos em um lugar chamado ‘pós-pandemia’ que não sabemos a linguagem, nem como se comunicar. É necessário, em um primeiro momento, acalmar essa situação.
SD – Você acha possível aplicar a Holacracia em grandes empresas, como uma multinacional, tendo em vista que organizações desse porte têm mais dificuldade de se transformar?
MS – Eu vejo uma mudança muito impactante e me arrisco a fazer um prognóstico: quem não se readequar não irá sobreviver para contar história. Estamos vivendo uma ressaca, por assim dizer, e a maioria das pessoas não tem consciência do que vem por aí. As coisas estão mudando muito rápido. Existem produtos e serviços que já não fazem mais sentido, e as empresas seguem oferecendo. Por outro lado, soluções para as ansiedades dos indivíduos, para os novos problemas, poucos ofertam. Precisamos nos preocupar menos com vendas e mais em acabar com a dor das pessoas. Então, acredito que as empresas que querem continuar usando um modelo ultrapassado, são como mapas antigos para um destino que não existe mais. É necessário reformular esse modelo e é nesse ponto que a Holacracia entra como uma boa opção.
Aqui, podemos acrescentar que ela já é um sintoma da economia colaborativa, por exemplo. Antigamente, se eu precisasse colocar um quadro na parede, era necessário comprar uma furadeira. Hoje, as pessoas perceberam que isso não é necessário, pois o equipamento seria utilizado poucas vezes e no restante do tempo ficaria parado. Iniciativas como o aplicativo Tem açúcar?, que coloca à disposição objetos para que outras pessoas utilizem, corrobora com isso. O conceito de propriedade não faz mais sentido para as últimas gerações. É muito mais fácil compartilhar para atender uma necessidade pontual e imediata. Daí surge a economia colaborativa.
Outro exemplo que podemos citar relaciona-se aos carros. Para a minha geração, era muito importante ter um automóvel. Hoje, os mais jovens querem mobilidade urbana. Quando eu morava em São Paulo, há 20 anos, perdia 3 horas por dia dentro de um carro. Hoje, as pessoas perceberam que esse tempo é muito valioso e não há a necessidade de investir dinheiro em um automóvel. Ou seja, isso é um indicativo de que essa indústria poderá desaparecer se não houver reconfiguração e ressignificação das necessidades.
Uma forma palpável de reconfiguração são as reuniões online, que aumentaram no home office, em conjunto com a necessidade de uma boa rede de internet em casa. O Google tem um projeto de colocar satélites ao redor do mundo e oferecer internet gratuita para toda a população global. Imaginem como ficarão as empresas que oferecem esse serviço? É uma indústria de bilhões, que emprega muitas pessoas. É como se uma chave geral fosse desligada, acabando com todo esse mercado. Se o negócio for baseado no modelo de pirâmide , como falamos anteriormente, e ela é baseada apenas no ‘o que?’ e não no ‘por que?’, não irá sobreviver. Com um propósito forte, podem até ‘desligar’ uma indústria inteira, mas essa empresa irá encontrar um caminho, atendendo outras necessidades e irá seguir adiante.
SD – Sabemos que você criou, recentemente, o aplicativo TCC Fácil. Como surgiu a ideia de criá-lo? Ele tem relação com a economia colaborativa?
MS – Uma das minhas atividades é a docência. Sou professor há 12 anos, mesmo sendo economista por formação. Nesse meio tempo, fui convidado para orientar muitos trabalhos de conclusão de curso (TCCs). Comecei a identificar dores similares entre os alunos e pensando em facilitar esse processo, criei um aplicativo gratuito com o propósito de compartilhar meu conhecimento para resolver tais dúvidas mais comuns.
Ou seja, identifiquei problemas comuns a um público específico, com base nos meus anos de experiência e, ao invés de dedicar o meu tempo separadamente a cada aluno, criei um app que reúne respostas a muitas questões. Nesse sentido, é um negócio colaborativo, se imaginarmos que as minhas horas individuais com cada um deles é um serviço. É claro que, caso o aluno tenha um grau dificuldade maior, pode solicitar atendimento e resolvê-lo separadamente.
O processo de criação me encantou muito e em sete meses de existência, o app já atingiu 10 mil usuários em todo o Brasil. Meu intuito foi facilitar a linguagem para o usuário, deixando-a mais acessível e fazendo o aluno refletir. Aqui entra o storytelling, que permeia tudo o que está no aplicativo. Ele foi utilizado como uma técnica em função da persona que desenhei.
Agora, existe ainda a possibilidade de monetizar esse aplicativo, quem sabe cobrando orientações de alunos que não são efetivamente meus, ou até inserindo publicidade no produto digital. Mas o mais importante é deixar o processo para o aluno mais simples, retirando possíveis ruídos na comunicação.