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Criatividade e inovação: entrevista com o Prof. Dr. Luís Humberto Villwock

Por 16/06/2020 28/10/2024 14 minutos

Somos seres criativos. Isso significa que somos capazes de criar, produzir e inventar coisas novas, ou transformar, melhorar antigas. A criatividade tem ocupado espaço de destaque no mercado, principalmente porque se conecta à capacidade do indivíduo de inovar e, em um contexto como o atual, é na inovação que estão depositadas as esperanças de sobrevivência dos negócios.

Mas será que a criatividade realmente favorece a inovação? Será que ela, dentro de empresas, resulta em melhores tomadas de decisão? Será a criatividade capaz de aumentar as possibilidades de sucesso dos projetos?

Para refletir sobre essas questões, convidamos o Prof. Dr. Luís Humberto Villwock, Assessor da Superintendência de Inovação e Desenvolvimento e fundador do Crialab – Laboratório de Criatividade do TECNOPUC (PUCRS), para conversar conosco. Desde já, agradecemos sua disponibilidade e contribuição para o nosso blog.

Criatividade individual e coletiva

SoftDesign – Gostaríamos de começar esse bate-papo explorando o conceito de criatividade, pois sabemos que o significado do termo suscita dúvidas. O que é criatividade? Como ela se apresenta no ser humano?

Luís Villwock – Antes de falar sobre a criatividade, acho importante olharmos para o momento atual. O conhecimento hoje está disseminado. Qualquer pessoa que adotar uma perspectiva mais impositiva ou de ‘dono da verdade’ está falhando. Porque existe uma série de aspectos a serem considerados, o mundo tem nos mostrado que há uma complexidade de fenômenos, variáveis e contextos.

Essa pandemia que estamos vivendo nos abre, seguramente, uma Caixa de Pandora e nos faz rever uma série de práticas e valores. E agora o mundo nos pediu para pararmos para pensar, para rever nossos conceitos internos, os conceitos organizacionais e os de cidadania, o papel de cada um de nós na sociedade.

É uma situação bastante desconhecida, errática. Olhemos para a ciência, que avança na tentativa e erro, lançando hipóteses e refutando-as. Os cientistas estão se esforçando para compreender o fenômeno provocado pelo coronavírus e, na medida em que as coisas acontecem, as variáveis e evidências vão aparecendo, algumas são refutadas e outras mantidas – e isso está acontecendo agora, em tempo real.

Dado esse contexto bastante complexo, severo e rude, eu diria que a criatividade passa a ser um elemento extremamente necessário. Ela é um fenômeno não somente humano, mas nós – devido a nossa racionalidade menos limitada – nos expressamos mais do que outros animais, e por isso em nós ela é mais ‘completa’. Consequentemente, temos condições de considerar um maior número de variáveis, somados a nossa capacidade sensorial de entender o mundo através dos sentidos físicos. Nós acumulamos esses conhecimentos e experiências na nossa caixa craniana, por meio da memória, e isso compõe o nosso repertório individual. Esse repertório é acessado quando precisamos criar algo ou tomar decisões.

Esse movimento é extremamente complicado porque denota uma reflexão interna, na qual olhamos para os fenômenos e buscamos dentro de nós referências parecidas, sejam elas aprendizagens tácitas ou teóricas. Nós realizamos esse raciocínio, no qual quanto mais repertório, maior o número de variáveis para serem colocadas no radar, no nosso dashboard de avaliação – e, assim, aumentamos a nossa chance de potencial sucesso em tomadas de decisão. Isso é o que eu chamo de criatividade.

O grande problema é que nós não estamos sozinhos. O homem, além de ser um animal mais racional, é um ser social. Portanto, nós crescemos e nos desenvolvemos em conjunto. Para convivermos, precisamos estabelecer protocolos de comunicação que fazem com que consigamos entender o que o outro está dizendo, que atribuem sentido ao diálogo.

Neste ponto, a criatividade deixa de ser individual e passa a alcançar um nível de maior complexidade em que há o desenvolvimento de uma criatividade coletiva. Essa, além de ser muito mais complexa, é muito mais rica porque a união de mentes criativas (o todo) é maior do que a soma das partes. Nesse sentido, há a evolução da disciplinaridade, para a interdisciplinaridade, para a transdisciplinaridade. São camadas de desenvolvimento, de conhecimento humano, do mais específico para aquele que integra uma visão mais sistêmica, onde cada indivíduo se especializou em uma determinada lente de observação devido a sua trajetória, gosto, influência, identificação, etc.

Quando estabelecemos o diálogo, podemos nos olhar e nos enxergar. Conseguimos entender que o outro pode aportar um campo de visão com uma outra lente, um olhar diferente do meu. O mais legal é que ao estabelecer esse grau de respeito e identificação com o diferente, aceitamos que podemos juntos compor uma coisa que não é nem só minha e nem só do outro, mas é resultante de um fazer e pensar coletivo. É um conhecimento que não conseguiríamos desenvolver sozinhos, ou que, pelo menos, levaríamos muito mais tempo para alcançar.

Ou seja: a grande diferença entre a Gripe Espanhola e a pandemia de coronavírus, é justamente o maior grau de atenção, cuidado, preservação e proteção nesta última, visto a grande variedade de profissionais trabalhando para resolver esse problema. Eles estão testando, avaliando, realizando provas de validação, mesmo sabendo que essa validação pode ser transitória, visto que no mundo de hoje ela é ocasional, conjuntural. Essa dimensão de finitude e de humildade é indispensável para continuar evoluindo.

Múltiplos olhares enriquecem o contexto

SD – A presença dessa criatividade transdisciplinar nas empresas é uma forma de amenizar a finitude das coisas? Quero dizer: equipes transdisciplinares, com indivíduos que usam seus conhecimentos e experiências para criar novas soluções, novos projetos, favorecem a manutenção da inovação nas empresas, visto que produtos e serviços precisam se adaptar devido à transformação constante do contexto?

LV – Eu não tenho dúvida disso. Com certeza essa é, eu arriscaria dizer, a única estratégia que as empresas podem adotar para sobreviver. Nesse ponto, existe uma série de conceitos e arranjos institucionais que vão se desmanchar.

Quem de nós poderia imaginar que a Boing estaria falida? Ou seja, se ela não for estatizada pelo tesouro norte-americano, não existem mais voos no mundo! Diversos bancos só não irão quebrar porque os sistemas mundiais irão segurar. As relações de trocas na economia não existem mais como antes. Os parâmetros não existem mais.

As relações que construímos e monetizamos estão sendo repensadas. Consequentemente, precisamos estabelecer novos padrões de entendimento da realidade e, portanto, sermos menos afoitos nas tomadas de decisão. Antes da pandemia, quanto valiam os ativos da Uber? Quanto valem agora? E quanto valiam antes e valem agora os ativos da Zoom? Dadas as modificações de contexto (que serão cada vez mais constantes), não há outra alternativa a não ser trazer múltiplos olhares para o mundo e para as diversas situações que se apresentarem. A mudança está muito rápida. Esses múltiplos olhares nos ajudam a enriquecer o contexto.

Além disso, acredito que a partir deste momento que estamos vivendo acontecerão desconstruções institucionais. Muitas empresas irão deixar de existir e irão se reconectar com outras. Teremos diversas fusões, variadas aquisições e fragmentações. Organizações que eram sólidas irão ruir e criar spin-offs que, futuramente, podem crescer e se tornar sólidas novamente. Todos os negócios irão sofrer esse impacto, alguns mais, outros menos – e eles irão precisar deste manancial de experiências individuais para remodelar suas tomadas de decisão a partir daquilo que é essencial, que não é superficial.

Colocar assuntos em mesas de discussão e permitir que pessoas diferentes – inclusive de fora das organizações – possam trazer suas leituras é de uma riqueza enorme. Inclusive, aqui podemos lembrar do conceito de Open Innovation, inovação aberta. Por maior que seja a empresa, por melhor que seja o salário que ela atribui aos seus colaboradores, uma pessoa alheia à organização pode ter um insight melhor que qualquer um que esteja dentro dela, por exemplo.

Essa visão permite que outros olhares, que pessoas de outras realidades possam fazer parte da construção, orientação e dos rumos da minha empresa. Aquele conceito fixo de CNPJ está se transmutando – ele passa a ser um organismo mais plástico, com fronteiras mais maleáveis.

Essas fronteiras estão também muito mais frágeis do ponto de vista de controle, o que resulta em outro desafio: é imprescindível contar com a criatividade coletiva, mas torna-se muito difícil fazer com que o meu propósito (de organização) seja realmente relevante para atrair colaboradores. Ou seja: se perdemos a segurança da apropriação de mentes por um bom salário, o desafio é como manter a adesão, o engajamento em cima de um projeto.

Os rearranjos inovadores

SD – Neste contexto atual, no qual aproximadamente 600 mil micro e pequenas empresas irão falir (CNN), o mercado brasileiro precisará passar por um amadurecimento para chegar a um bom nível de inovação aberta? Para entender a importância da criatividade para manutenção e renovação das organizações?

LV – Nós temos que olhar para esse fenômeno com um olhar de curto, médio e longo prazo. No curto prazo há uma dor, uma fragilização, uma ruptura. E isso sim, levará muitas empresas ao desespero. Mas por outro lado, o papel das organizações é mostrar para as pessoas que essa fase irá passar. As empresas capazes irão se moldar e se readequar às situações que enfrentamos.

Vou contar uma história para vocês entenderem o que eu estou dizendo. Quando Fernando Collor de Mello foi presidente do Brasil, entre 1990 e 1992, ele confiscou a poupança de toda a população com o intuito de parar a inflação, e abriu os mercados à revelia. Foi um desespero gigantesco no complexo calçadista do Vale dos Sinos, pois muitas pessoas perderam seus empregos e as indústrias fecharam, faliram. Os calçados produzidos na região na época eram baratos, de preços competitivos, comprados em grandes quantidades por lojas maiores.

Porém, diversas outras empresas criaram arranjos menores que ficaram conhecidos como Ateliers de Produção. Esses pequeníssimos negócios, que começaram a existir nas garagens das casas, reuniam designers com alto nível de especialização e produtores remanescentes. O que aconteceu foi que o mercado calçadista gaúcho passou a ser reconhecido pela sua qualidade (não mais pelos preços competitivos), e assim surgiram grandes marcas locais como a Grendene, a Datelli, a Azaléia, a Schultz.

O que eu quero dizer é que o mundo precisa ser visto muito além do day after. Esses rearranjos que já estão acontecendo agora podem ser benéficos, inovadores, disruptivos. Se soubermos ser proativos e criativos para construir novas fórmulas de sucesso, se soubermos canalizar o estresse, a incomodação natural para a verdade genuína, para aquilo que faz sentido, o bordão de que de toda a crise surgem oportunidades, será verdadeiro.

É um momento para identificar parceiros de negócios, pessoas que pensam positivo, que discutem, argumentam, com capacidade crítica e flexível. Pessoas que têm cuidado e respeito com a opinião do outro sem perder seus pontos de vista, sem diminuir a importância dos seus valores.

Um exemplo de Flow: Brothers In Arms

SD – O que tu queres dizer é que o capital humano está se tornando ainda mais relevante para as empresas neste momento?

LV- É um conjunto. É preciso misturar uma série de elementos. Mas, sem dúvida, o mais importante dele são as pessoas, elas são o motor.

Existe uma certa hierarquia. A primeira coisa necessária às empresas são pessoas. Em segundo, temos as características dessas, porque não é ‘qualquer pessoa’: são pessoas inteligentes, ousadas, curiosas, respeitosas, com capacidade de diálogo e valores. Em seguida, vem a importância do repertório dessas pessoas: seu conhecimento, sua experiência, sua capacidade de aprender fazendo, o learning by doing. Além disso, é preciso ter bons métodos e estratégias de trabalho; e, por último, um ambiente que favoreça pensamentos inovadores e disruptivos, que permita sair da zona de conforto e evoluir.

Esse conjunto proporciona o que o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi chama de Flow. Um estado mental no qual a pessoa está totalmente imersa no que está fazendo, que proporciona um sentimento de envolvimento e sucesso na atividade. É quando eu perco a noção de tempo e não quero parar de fazer aquilo. Esse estado não acontece em todos os momentos, mas quando acontece, nós percebemos. E, se conseguirmos criar essas condições para que isso seja realidade dentro de uma empresa, é incrível, e pode gerar criações verdadeiramente inovadoras.

Vou contar pra vocês uma coisa muito legal que surgiu durante a pandemia, para exemplificar o Flow. Em uma sexta-feira à noite, na primeira semana de quarentena, eu estava preocupado com a continuidade das aulas, com os alunos, com meu salário; enfim, havia muita dúvida sobre o que aconteceria em seguida. Nas redes sociais, eu vi a situação que estava acontecendo na Itália e na Espanha, o nosso day before, e vi um vídeo em que as pessoas batiam palmas para os agentes de saúde. Aquilo me fez lembrar da minha irmã, que é intensivista no Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre, ou seja, que está lá no front da batalha. Fiquei verdadeiramente preocupado com ela e compartilhei no meu Facebook aquele vídeo com esse pensamento.

Em 20 minutos, um empresário amigo meu me mandou uma mensagem contando que a irmã dele trabalhava no mesmo hospital, só que no setor de emergência. Ele sugeriu fazermos algo sobre isso, de criarmos uma campanha para trazermos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para essas pessoas, e eu topei. No sábado, eu recebi a ligação do presidente da UNICRED – uma das maiores instituições financeiras de médicos do país – dizendo que adorou a nossa ideia e se oferecendo para ajudar. No dia seguinte, ele acionou todo o departamento jurídico da cooperativa para montar o estatuto de um fundo de doação. Todos trabalhando como voluntários. Na segunda-feira já contávamos com o fundo e com uma conta bancária. Na quarta, éramos em 500 voluntários; dez dias depois, 700, e logo 1.000 voluntários.

Organizamos spinoffs por temas em grupos de WhatsApp: máscaras, aventais, ventiladores, logística; e em menos de vinte dias, havíamos criado quinze spinoffs. Já havia 223 hospitais cadastrados enviando demandas que somavam 1.500 mil aventais, 85 mil máscaras, etc. Eu comecei a ligar para os meus relacionamentos pedindo doação. Comentei que, na verdade, poderíamos estar ajudando os colaboradores deles, as famílias, enfim, qualquer pessoa que fosse para o hospital. Hoje, temos um site, todas as redes e mídias. O nome dessa organização é Brothers in Arms, que é uma música do Dire Straits criada na época da Guerra do Vietnã. As armas de uma causa.

É isso que eu quero dizer. Para que tudo isso fosse possível, contamos com pessoas de diversas especialidades, que não estavam ali por dinheiro, mas sim por uma causa, um propósito muito forte. As pessoas perceberam que não podiam estar longe daquilo, que não era possível se alienar. Dedicaram o seu tempo a isso. Esse é o tipo de organização genuína.

E quando terminar a pandemia? Cada um volta para os seus projetos. Porém, o que foi criado nunca mais deixará de existir. Na próxima necessidade, estaremos reunidos novamente. Esse tipo de ação, de repertório, está no nosso currículo. Isso ninguém vai tirar de nós. Experimentamos um Flow que fez sentido para todos nós.

Foto do autor

Micaela L. Rossetti

Estrategista Digital, especialista em Marketing Digital e Branding. É graduada em Jornalismo (UCS), Mestre em Comunicação Social (PUCRS) e tem MBA em Gestão de Projetos (PUCRS). Especialista em Growth Marketing, Search Engine Marketing, Inbound Marketing e Content Marketing.

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